Parallax l Ato Abstrato Galeria de Arte


Exposição individual l Solo show


15 de fevereiro a 21 de março de 2020
de quarta a sábado das 18.00h às 22.00h

Ato Abstrato, Galeria de Arte
Rua São Sebastião da Pedreira, 72 1050-209 Lisboa
tel. +351 963 324 668 +351 932 416 994






© Sérgio Costa




QUANDO COMEÇA A DESPEDIDA?
Não consigo precisar em que momento se insinuou no espírito para depois se enovelar.
Nuclear, fervente, vagarosa, esta pergunta ter-se-á encaminhado num momento indeterminado das minhas profundezas para depois sedimentar-se ao ritmo descontínuo em que tudo se forma quando arrefece. Tornou-se rocha dura, perdeu inocência, revelou-se uma pergunta feroz.
A formulação repetida mostrou-me num apeadeiro fantasma saturado de humidade, vapor de água. Vejo-me ali sentado, sonâmbulo, antagónico, a respirar mecanicamente a atmosfera densa.
Diante de mim, a passagem de um comboio com o exacto comprimento milimétrico da minha existência. Apesar dos olhos impecavelmente abertos, apenas avisto em algumas janelas acenos vidrados e alguns rostos vagamente familiares. Continuei impassível.
Terminada a fantasmagoria, a pergunta esvaziou-se de sentido, revoluteou-se e desenhou nos ares anéis de onde se desprendiam rolos de fumo espesso.
Fecho os olhos, permito que avance sobre mim uma massa compacta de bruma; acomoda-se, cinge-me, molda-me. Depois diminui enquanto se expande uma mancha de fundo negro. Nada acontece, nada faço, nada preciso fazer, apenas aqui estou, vivo, a respirar.
Abro os olhos de repente. Diante de mim um plano infinito, sem rasto de pássaros, nada que consiga distinguir, ruídos, cores ou formas. Nada renuncio, fecho os olhos. Ali estive um longo momento, sem tempo a contar, sem qualquer intromissão de peso ou dor.
Abro lentamente os olhos, pressinto movimento em redor. A malha de nuvens que me cobre foi baixando, destapa o meu corpo, suaviza-se o fundo plúmbeo que se torna acinzentado. Dá-se a anteflexão de cortinas de fumo que se atravessam com elegância, urdem telas de cristais de gelo onde algo se vai reflectindo. Por detrás acentua-se uma luz brilhante.
Emergem outras nuvens, finas e brancas, têm formas agradavelmente incoerentes. É nelas que surge o primeiro rosto, nítido. Temos essa habilidade de descobrir formas nas nuvens. Sucedem-se outros, os acenos daqueles seres e paisagens encarrilados que se diluíram na largura do espaço e se tornaram transparentes. 
Reconheço animais e pessoas que tocaram a minha existência, as paisagens de água onde me banhei, cada grão de terra que escapou dos meus dedos, a curiosidade dos veios de rocha observados, tudo já desaparecido deste horizonte físico. Os olhos voam quando se abrem a imagens silenciosas.
Regressa a pergunta evanescente e extemporânea: Quando começa a despedida?
Antes, sem que me apercebesse, muitos se despediam em surdina de mim, de tudo; fluxo contínuo, invariável.
Será condição desta pergunta, apenas surgir depois de se somarem desgostos, perdas suficientes e memórias sensíveis. A inquietação da pergunta anunciava a premência de me juntar às almas anónimas e silentes que um dia decidem abrir mais o coração às pequenas alegrias que nos animam, ao sentido maior das insignificâncias.
Alguém que sai todas as manhãs de casa sem razão aparente, a senhora que cortou a trança em sinal de luto e adeus, aquela que abraça o cão por todos os dias a salvar quando a olha fundo nos olhos, aquela que faz do banco de jardim a sala de estar onde recebe todas as criaturas, alguém que empresta a outro com que se cruza um sorriso que havia desaprendido, alguém que toma consciência e pratica a respiração com o prazer desse impulso primário. Gente atrás de gente, que vai cumprindo o sentido máximo da existência: simplesmente estar vivo e participar nesse milagre.
Despedir em vida de alguém, de algo, é dos actos mais íntimos, lúcidos, serenos, intrépidos. Por vezes reconhecemo-nos quando cruzamos, algo se desprende de nós.
Se a morte que interrompe a linearidade do tempo for tão imperfeita quanto a vida, não há qualquer separação, medo ou drama.

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